quarta-feira, 14 de outubro de 2009

ARTE REVISITADA


Cachimbos, locomotivas e o surrealismo da profusão de imagens

Há aproximados 80 anos, René Magritte afirmou enfaticamente sob a figura que acabara de pintar, “isto não é um cachimbo”. Hoje, imagens flutuam nas telas e impressas sobre legendas que afirmam inúmeras coisas, as quais nem sempre são possíveis de acontecer numa realidade cuja lei gravitacional ou ordem das espécies continua a mesma. São imagens de tsunami gigantes, animais mutados, ou simplesmente distorções contextuais de tempo e espaço que manipulam a verdade dos fatos.

O pintor surrealista havia proposto um exercício de desconstrução cognitiva e um diálogo acerca do ardil de que as imagens são capazes, afirmando que o que estava representado em sua tela não era um cachimbo, era apenas a imagem de um. Magritte argumentou que não se poderia acender aquele cachimbo pintado e, com isso, expressou uma forma de capacidade crítica diante da ilusão das imagens. Mas o cinema há algumas décadas já atraía os olhos do mundo exatamente para a ilusão que as imagens poderiam criar.

Paris, 28 de dezembro de 1895: no café Salon Indien, a platéia presente foge assustada com a imagem de uma locomotiva que se aproxima em direção à tela num filme dos irmãos Lumière. Hoje: pessoas abordam atores nas ruas chamando-os pelo nome de seus personagens, movimentos culturais surgem a partir de imagens e suas representações (Warhol não retratou Norma Jeane Mortenson, mas a Marilyn Monroe do vestido esvoaçante).
A Internet trouxe aos cidadãos comuns um lugar à tela. Qualquer pessoa pode se inserir nas luzes da ribalta que uma página virtual pode oferecer. Nesse espaço, figuram milhões de exemplos das tentativas de construção de imagens a que as pessoas se submetem, não havendo mais o fator material como variável. Até mesmo quem disponibiliza imagens a esmo no espaço virtual está de alguma forma construindo uma representação vulnerável à interpretação subjetiva de tantos outros.

Em relação à mídia, o que não diz respeito apenas ao jornalismo, a utilização de imagens não poderia ser mais variada. Muitas vezes, a mesma fotografia circula vinculada a conceitos opostos; noutras, uma única fotografia é considerada prova irrefutável de certa realidade, a ponto de não haver suscitações acerca do que o ângulo e a luz encerraram naquele excerto.

Se hoje não nos assustamos mais com trens que avançam em direção à tela do cinema, ainda assim buscamos certa experiência catártica ao nos interessarmos por filmes de ação, imagens de dilúvios e outros fenômenos. Se vivenciamos experiências sem registrá-las imageticamente, a impressão é de que elas não aconteceram; a sociedade contemporânea parece, assim, estar indissociavelmente ligada à imagem como nunca antes na História, a ponto da escritora Susan Sontag afirmar que a proliferação de fotografias estava criando dentro das pessoas uma “relação crônica de voyeurismo”.

Há ainda outro fator relevante: a manipulação estética. Comparar, por exemplo, uma revista de moda da década de 1980 a uma atual significa constatar que atualmente as imagens de pessoas estão fantasticamente livres de falhas físicas. Chega-se, assim, a uma fase pós-fotografia, em que há literalmente uma decodificação da imagem em pixels, processo que não se limita ao que foi colhido do mundo material. Mas o preocupante diante de tais atividades não é tanto a manipulação propriamente dita quanto a difusão e aquiescência dessas imagens pelas pessoas. E o processo de autoconhecimento de que tanto se falava quando dos primeiros daguerreótipos ao alcance da população comum? Não era nessa época, há mais de 100 anos, que as pessoas se pegavam maravilhadas diante de suas próprias imagens congeladas e planificadas, isentas do olhar viciado daquele que se mira no espelho?

O cachimbo de Magritte não pode ser aceso, assim como a locomotiva dos Lumière não pode atropelar, assim como não se pode amar um astro do cinema a quem nunca se conheceu. Por tudo isso, a mensagem que Magritte tentou passar em sua série de pinturas “A Traição das Imagens” figura como um interessante lembrete à nossa sociedade, cada vez mais imersa no mundo das representações, que ver, embora seja principalmente uma atividade para os olhos, também se faz com os outros quatro sentidos.



Por Maricy Ferrazzo

Imagem 01: wikipedia.com
Imagem 02: nationalcorridors.org
Imagem 03: faculty.weber.edu

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